Rio Piracicaba bate recorde de volume de água no início da piracema
Peixes já saltam as corredeiras em ano marcado por mortandade. Vazão do Rio Piracicaba bateu recorde em novembro de 2024
Edijan Del Santo/EPTV
Como medir o tempo de recuperação da natureza? Apenas com o calendário humano seria difícil. Mas ela sempre dá provas do poder de se reconstruir. Basta observar.
O mês de novembro já entrou para a história do Rio Piracicaba. Os dados da Estação Convencional do Departamento de Engenharia de Biossistemas da Esalq (Escola Superior de Agricultura da USP) mostram que na primeira semana do mês, choveu no município um volume de 148,9 milímetros.
A estação foi criada em 1917 e desde então, esse é o maior registro para o período do início da piracema, época de reprodução dos peixes. Em termos de comparação, a média mensal histórica de chuva para a primeira semana de novembro em Piracicaba era de 25,7 milímetros.
A medição é feita por equipamentos que coletam a chuva em pontos distintos da cidade. O índice pluviométrico é calculado com base na altura em que a água atinge um espaço delimitado. Por exemplo, 200 milímetros no medidor, significam que a chuva alcançou altura de 20 centímetros de lâmina d´água. Mas, como esse volume de água influencia o ciclo de vida dos peixes?
O professor doutor Domingos Garrone Neto do Campus Experimental do Litoral Paulista da Unesp explica que espécies nativas do interior paulista, como o dourado (Salminus brasiliensis), pacu (Piaractus mesopotamicus), curimbatá (Prochilodus lineatus), lambaris (algumas espécies do gênero Astyanax) e o mandi-pintado (Pimelodus maculatus) necessitam de gatilhos ambientais para migrar e se reproduzir. O aumento da turbidez da água, do nível do rio e da velocidade da correnteza entre outros fatores podem ser considerados gatilhos.
Segundo Garrone Neto, é possível que o retorno das chuvas e o aumento no nível do rio possam ter um efeito positivo, minimizando os grandes danos provocados por algumas atividades humanas.
Espécie curimbatá (Prochilodus lineatus)
Leonardo Merçon / iNaturalist
Tragédia ambiental
Em julho desse ano, o Rio Piracicaba e a Área de Proteção Ambiental (APA) do Tanquã, ganharam repercussão nacional com a mortandade de peixes.
A Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo) estimou que 235 mil peixes morreram. Análises da Companhia na época mostraram nível de oxigênio dissolvido na água, próximo a zero, o que tornou impossível a vida dos cardumes.
Tanquã, em Piracicaba, registra mortandade de peixes
Reprodução/EPTV
O dano ambiental gerou multa de R$ 18 milhões de reais à Usina São José de Rio das Pedras, apontada pela Cetesb como responsável pela poluição da água. Os efeitos da carga poluidora foram sentidos no Rio Piracicaba por cerca de dez dias. A usina informou que colaborou com as investigações, mas negou ter provocado a morte dos peixes.
A esperança da piracema
Desde 1° de novembro, teve início a piracema, período de reprodução dos peixes em que a captura de espécies nativas fica proibida até o fim de fevereiro. No Rio Piracicaba algumas espécies já estão subindo o curso para a reprodução.
"Os ovos e as larvas desses peixes que realizam piracema precisam encontrar locais aptos ao seu desenvolvimento, como as áreas de várzea e as lagoas marginais. Em muitos locais da bacia do Rio Piracicaba essas áreas estão afetadas pelo desmatamento, pelo aterramento e pela introdução de espécies de peixes que não são nativas, como apaiaris (Astronotus spp.), tucunarés (Cichla spp.), bagres-africanos (Clarias gariepinus) e tilápias (algumas espécies africanas da família Cichlidae)", conclui o professor. As espécies invasoras podem se alimentar dos ovos dos peixes nativos.
Além disso, muitas áreas de cabeceira da bacia, incluindo diversos afluentes importantes, estão impactadas por pequenos barramentos, as chamadas PCHs (Pequenas Centrais Hidrelétricas).
Essa interrupção do curso natural dos rios prejudica a reprodução das espécies migradoras, que necessitam atingir áreas de desova, normalmente trechos mais rasos com fundo de cascalho ou pedra, onde a oxigenação da água e a correnteza são fundamentais para que os ovos tenham viabilidade. Um assunto complexo que segundo o pesquisador tem sido relegado a um segundo plano nas discussões a respeito da gestão ambiental das bacias hidrográficas paulistas.
Apesar de todos esses desafios, a natureza mostra vigor na recuperação da vida. Com o aumento do nível do rio e com a época de preservação das espécies nativas para a reprodução a esperança é que os peixes mantenham o ciclo reprodutivo, mesmo depois de um desastre ambiental de grandes proporções.
Peixes subindo o Rio Piracicaba durante o período de Piracema
Gabriela Lopes/Arquivo pessoal
Análise dos especialistas
O professor da Unesp dá detalhes sobre esse balanço. "O monitoramento da ictiofauna (conjunto de espécies de peixes de uma determinada região biogeográfica) é uma ferramenta importante para podermos avaliar a extensão desse tipo de dano. Esse monitoramento pode ser feito de diversas formas, como o acompanhamento de descargas pesqueiras em comunidades que ainda praticam a pesca artesanal, o monitoramento de atividades de lazer como a pesca amadora e o monitoramento de ovos e larvas (o chamado “ictioplâncton”)".
"Infelizmente o estado de São Paulo não possui uma política dedicada a isso na região do Rio Piracicaba e, também, em outras bacias, o que impede que uma avaliação adequada desses danos e de uma eventual resposta natural do ambiente e dos peixes a esse problema", completa Garrone Neto.
Toda situação por mais difícil que seja, deixa lições. A ausência de políticas ambientais sérias e do respeito à natureza por parte de muitas empresas ligadas ao uso da terra e da água podem ser catastróficas. Os desastres recorrentes observados no Rio Piracicaba e em alguns dos seus afluentes atestaram isso.
"É necessário que instituições como o Ministério Público passem a exigir ações mais efetivas do Estado, tanto para evitar os desastres quanto para conservar os rios e a sua ictiofauna, isso inclui monitorar para conhecer. É necessário responsabilizar os culpados e fazê-los pagar pelos danos, fomentando pesquisas e ações voltadas à conservação da ictiofauna", esclarece Garrone Neto.
O professor do setor de piscicultura da Esalq Brunno da Silva Cerozi, dá detalhes de como funciona a reprodução dos peixes. "Eles passam praticamente um ano se preparando para chegar nesse período da piracema que eles vão migrar pra fazer justamente a reprodução, é importante lembrar que esse é um período único. Então se a gente perder esse período agora, só daqui um ano que isso vai acontecer novamente".
Cerozi diz que por isso, é fundamental o respeito à piracema, época em que fica proibida a pesca de peixes nativos. "Um peixe faz muita diferença. Dependendo do tamanho desse peixe, nós estamos falando de alguns milhares de ovos que deixariam de ser liberados e fertilizados. Então, cada peixe, cada fêmea ou cada macho que é retirado de forma prematura e que não faz realmente a desova, nós estamos falando de alguns milhares, podemos até falar de centenas de milhares de peixes que deixam de ser repovoados no rio de forma natural, faz toda diferença. Não importa se é um só se são dez, realmente esses peixes precisam chegar ao seu destino e fazer esse evento que é anual".
A recuperação total do dano ambiental causado deve levar alguns anos, segundo os especialistas. Mas quando se vê o salto dos peixes nas corredeiras do Piracicaba, é inegável perceber a força que a só a natureza tem.
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